Corneta do RW

Junho de 1964 e o estômago da torcida gremista

Junho de 1964 foi um mês histórico para o jornalismo esportivo porto-alegrense. De saída, uma grande mudança: a Folha da Tarde Esportiva, jornal de esportes da Caldas Júnior, deixava de circular diariamente, algo que ocorria desde outubro de 1949, e volta a ser semanal (rodando às segundas-feiras). Com isso, a empresa centrava a cobertura esportiva diária no seu tradicional vespertino, a Folha da Tarde. Enquanto a Esportiva não tinha, nos meses que antecederam sua retração, nenhuma coluna fixa assinada, mesmo as de opinião, a Folha da Tarde era sede, por exemplo, da famigerada “Fora das 4 linhas”, de Cid Pinheiro Cabral, que tocava plena, sem contraponto. Vale lembrar aqui que Cid era identificado, logo não era membro efetivo da IVI. Por sinal, naquele mês, algo muito tradicional na imprensa esportiva porto-alegrense, ele havia elegido um futuro craque do Internacional, no caso Gaspar, quem ele compara a Pelé (Taison ou Messi?).

O Grêmio, que havia vencido sete dos últimos oito campeonatos, recém submetera o seu tradicional rival Cruzeiro a uma humilhante derrota por 8 a 0, e liderava invicto o campeonato ao lado do Internacional, marcando 17 gols em apenas quatro partidas (cinco de Alcindo e quatro de João Severiano, os artilheiros do campeonato). O campeonato seguiria empatado na rodada seguinte, em 7 de junho, quando Grêmio e Inter venceram, respectivamente, Guarany de Bagé e Farroupilha, que tinham campanhas muito semelhantes até aquele momento. Enquanto o Grêmio venceu em Bagé por 2 a 0, o Inter goleou em Porto Alegre por 4 a 0. Na cobertura do jogo, a tradicional desequivalência de resultados. Na Esportiva, vitória do Inter grande, em letras coloridas; vitória do Grêmio pequenininha. Nas manchetes, “Internacional sereno goleou o Farrapo”, em uma vitória “daquelas que dispensam palavras”. Por outro lado, “Grêmio deu tudo para bater o Guarany na Estrela d’Alva”, já que “não contou com a meia cancha funcionando como deveria”. Na edição regular da Folha, a chamada para os jogos do final de semana anterior foi ainda mais objetiva: “Internacional ganhou com sobras, mas Grêmio precisou transfusão”.

            O campeonato seria finalmente desempatado na rodada do dia 14, o que causaria uma ruptura no vestiário da IVI. O Grêmio venceu, com alguma dificuldade, o Flamengo no Olímpico, enquanto o Internacional ficou no empate com o Brasil, em Pelotas. Na Esportiva, o Grêmio teve lugar de destaque, na nobre página central. Para o lado do Inter, no entanto, “nem tudo era tristeza”, já que “não foi perdida a invencibilidade”. O árbitro da partida de Pelotas, Djalma Moura, foi elogiado por sua boa atuação. Numa postura totalmente diversa, na edição tradicional da Folha, a grande manchete foi “Golo anulado em Pelotas modificou profundamente o lugar de cada um”. O autor da reportagem do jogo (não assinada), relata a revolta da direção e dos jogadores do Internacional por um gol de Sapiranga, que teria sido anulado por impedimento, num rebote supostamente vindo direto do goleiro Gióvio para ele. Fora isso, “Brasil e Internacional foi o melhor jogo da rodada”, enquanto o Grêmio jogou mal e foi cozinhado pelo Flamengo.

No dia seguinte, Djalma Moura, em declaração para à Folha da Tarde na FGF, afirmava: “Quem disse que a bola veio de Gióvio para Sapiranga está redondamente enganado”. Mas não foi a entrevista o que mais chamou a atenção dos leitores na edição do dia 16. A bomba do dia era direcionada ao âmago da torcida gremista: “Pequeno polegar dará ultimato ao Grêmio: 4,5 milhões de luvas ou adeus definitivo do Olímpico”. A reportagem, ilustrada (talvez maliciosamente) por uma foto de Joãozinho sorridente em frente ao seu famoso Fusca, tem todos os tradicionais requintes de crueldade: lembra a identificação do atleta com o Grêmio (que certamente era – e ainda é – recíproca) e, claro, não poderiam faltar os valores, que, ao menos do lado azul, sempre são facilmente revelados. “Domínio público”, é o que diz a própria reportagem. No dia 19, a implacável reportagem voltava do Olímpico com a manchete: “João Severiano diz – pelo que o Grêmio me ofereceu, não renovo o contrato”. Agora, Joãozinho não está mais sorridente. O descontentamento de dele com o Grêmio é ilustrado com uma foto de mau humor e diversas expressões caricatas: “carrancudo”, “cara fechada” e “cara de quem comeu e não gostou”. “Assim não vai dar… não vai dar mesmo”, teria dito João Severiano, ao sair do campo para o vestiário.

Aí, veio a rodada do dia 21: “Enquanto os rubros goleavam, o Grêmio quase cedia o empate”. Que manchete maravilhosa. Chega a dar medo do quase. Mas havia muito mais a assustar. Na vitória por 2 a 1 na casa do Pelotas, duas ausências deram o que falar: Alcindo e Joãozinho. Alcindo havia sofrido um choque em um dos joelhos no jogo anterior, deveria retornar em breve. Mas e Joãozinho? Na Folha da Tarde, as justificativas são várias: “nervos”, “disenteria”… “O estômago do Joãozinho”, este era o título da debochada “Fora das 4 linhas” do dia 23.

No dia seguinte, destaque para uma declaração do presidente do “Núcleo Colorado do Bonfim”, sob a manchete “Todo bom jogador prefere ficar no Internacional”, que sugere uma possível ida de Joãozinho para o clube dos Eucaliptos. Inclusive, foi procurado o pai de João Severiano que, com certeza, foi mais fácil de ser encontrado nos paralelepípedos do Partenon do que o pai de Marcelo Moreno na selva boliviana.

A novela Joãozinho prosseguiria nos dias seguintes, com cardápio completo e pouco criativo. Temos, por exemplo, entrevista com Rudi Armin Petry, que aparentemente não considerava o assunto “de economia interna”, e mais valores (com quase 100% de inflação em relação ao previamente divulgado), “luvas de 7 milhões”. A réplica do Núcleo Gremista do Partenon ao Núcleo Colorado do Bonfim sairia apenas quatro dias depois, menor, sem destaque, em meio às notícias do futebol amador. Até o celebrado artista plástico Xico Stockinger, que era chargista da Folha da Tarde, entrou na discussão sugerindo a presença de “forças ocultas” impedindo a concretização da renovação.

Mas o final da história, como todos sabem, foi feliz para a torcida gremista. A renovação saiu e foi noticiada, discretamente, no dia 30. (matéria sem fotografia)

O Grêmio seria campeão naquela temporada e, ainda, por mais quatro anos consecutivos. João Severiano ficaria no Grêmio até sua aposentadoria, em 1971. Rudi Petry seria presidente do Grêmio pouco mais de um ano depois da citada entrevista. E Gaspar foi um bom jogador, mas ficou muito longe de um Pelé. Teria rápidas e apagadas passagens por empréstimo a Flamengo do Rio e Corinthians já no ano seguinte. Em 1970, chegaria (ou voltaria, já que tinha sido da base tricolor antes de ir para o Inter) ao Grêmio após bem-sucedida passagem pelo Flamengo de Caxias.

Leonardo Reis de Souza, do grupo de estudos de história do esporte porto-alegrense Irmãos do Badanha (@irmaosdobadanha)

Fonte: Arquivo Técnico do Correio do Povo

Compartilhe este post

Pesquisa

Assista e Inscreva-se!

Arquivo